Manu Lafer

Músico e Compositor

Doze Fotogramas

Doze Fotogramas

O conjunto de 13 obras, contagem que brinca com o caleidoscópio e com a ilusão de movimento do título (da era analógica) que sugere o número 12, desenvolve o trabalho autoral anterior, através de canções na esteira do que João Gilberto chamou de “mantras”, como Estrela Guia, ou de outras bem humoradas, como A Gente Podia, com a cantada que seduz ao convidar para “ver avião decolar”. Cidade Inacabada, bossa nova exaltação de mirabolantes mas sutis modulações, foi feita para São Paulo, sem a divisão clara de partes e ritornelos – assim como o belíssimo samba Amor À Natureza, de Paulinho da Viola, feito para o Rio de Janeiro, mas em três partes, como um choro tradicional. Participam Monica Salmaso, José Miguel Wisnik e Danilo Caymmi – inaugurando aqui a parceria assídua, originada pela fortuita aparição de Manu em um programa de TV, que o acaso fez com que o autor de Andança encontrasse graças uma fugaz “zapeada” com seu controle remoto.

Release por Guilherme Wisnik

Doze Fotogramas é um disco de adensamento. Depois de Baião da Flor (1998), seu álbum de estréia, Manu Lafer reúne os fios daquilo que ainda podia ser visto, de certa forma, como um catálogo de gêneros, aprofundando um caminho próprio. Trata-se de uma verticalização poético-musical a partir de uma temática persistente. Manu evita sistematicamente os derramamentos emotivos, as aflições rasgadas, as baladas românticas. Sua poética desenvolve-se sobre uma duplicidade que costuma saltar esse intermezzo, enfocando ora temas ligeiros e banais, na forma de crônicas, ora reflexões filosóficas, existenciais. Alternância sobre a qual se monta também o disco anterior, se tomarmos como exemplo Eu Vou te Pegar, de um lado, e Deusa Densa, de outro.

Mantém-se também uma particular leitura – direta e indireta – do cancioneiro popular brasileiro. Sabrina e Gente 3 são explícitas referências a Marina (Dorival Caymmi) e Gente (Caetano Veloso). Mas há também leituras subliminares, afinidades processadas subterraneamente. Gilberto Gil, por exemplo, é uma presença oculta em A Lente do Homem, um dos pontos altos do disco. Refiro-me à elaboração poética do tema da religiosidade e da ciência, apontando o sentido humano do mistério, no salto sincrônico entre o micro e o macro, o céu e o feto. A solução encontrada por Manu, com uma melodia ondulante que parece sempre alongar-se ao invés de repousar, é de um lirismo tocante e original.

Também em Doze Fotogramas, canção que dá título ao disco, o efeito sintético da relação música-letra é muito feliz. Visual, a letra explora a suspensão onírica da melodia de Danilo Caymmi construindo instantâneos fotográficos por sob os quais o tempo escorre (“são três e te derramas”). Nesse pulso, o efeito conotativo aproxima a intimidade de um casal (bolsa, batom, álbum de retrato) e a teatralidade de uma representação (foto, cinema, novela). Sem querer forçar a nota, vejo aqui uma conversa com o universo buarqueano, tendo A Mais Bonita como pano de fundo. No instantâneo de Manu, o click é como um espelho diante do qual alguém se pinta ou é pintado.

Ao lado dessas canções, como adiantei no início, há aquelas que brincam com a linguagem popular, com as frases feitas, os jargões, os trocadilhos, namorando propositalmente uma certa malícia rasa, sem carisma. É o caso, por exemplo, de A Gente Podia, que trata de desencontros amorosos subjacentes a uma aparente facilidade no trato inicial entre homens e mulheres, na aproximação sem rodeios que a caracteriza. Também No Fim Das Contas descreve alguém que gostaria de fazer uma coisa mas acaba sempre fazendo outra, com um jeito meio sem graça de tratar a intimidade que se revela profundo, sem jogos de efeito, com um afeto livre de afetações (com o perdão do trocadilho).

Estrela Guia é a exceção em relação ao esquema que descrevi. Aqui a passionalidade é o centro, embora tratado discretamente. Me comove a percepção aguda da separação como algo instalado dentro do próprio eu, e não como uma ação que se sofre a partir de fora. Depois de uma primeira estrofe de comunhão entre a voz que canta e o seu amor, a sua “estrela guia”, há um corte de afastamento, um recuo: “mas um dia eu me senti distante/ e eu vi que o mundo mudaria”. Ela vai abandoná-lo, madrugada já rompeu. Mas a distância vem antes, não depois. Por isso “morrer na vida” é renascer no canto. Manu Lafer nos dá instantâneos fotográficos dessa miragem.


Faixas

1. Memória (Manu Lafer)

Toda memória tem seu preço
Como os encontros têm começo
Ogivas e rabiscos,
Recintos, corredores, labirintos
Do primeiro olhar
(Do sonho de olhar)

Toda memória tem urgência
Como os amores, diferenças
Traçados e desvios,
Os pátios, dissidências, desvarios
Do primeiro olhar
(Do sonho de olhar)

Toda memória é incumbência
Como os sorrisos são ausência
Passeios imprecisos,
Gerânios de gerúndios impassivos
Do primeiro olhar
(Do sonho de olhar)

Toda memória tem seu erro
Como as paredes devaneio
Desterros, extravios,
Ou flores nos cimentos abrasivos
Do primeiro olhar
(Do sonho de olhar)


2. A Lente Do Homem (Manu Lafer)

Participação: Monica Salmaso

Eu leio o céu de baixo
Até sem telescópio
É que o céu sou eu
Porque o céu é um ser
Eu leio a mão de cima
Até sem microscópio
É que a mão é Deus
Porque a mão é um ser

E se a lente do homem vê Deus
Onde a lente de Deus vê o homem
Saber é a imagem da fé
Que do outro se crê
E se do núcleo da célula
A íris espelha o destino
O dilema: ou a morte,
Ou o bom e o belo e o dom

Eu leio o céu de baixo
Até sem telescópio
É que o céu sou eu
Porque o céu é um ser
Eu leio a mão de cima
Até sem microscópio
É que a mão é Deus
Porque a mão é um ser

E se o amor é a fé,
Que do prisma do afeto
É o fim que é o feto
Onde o ventre é o teto que o tato tocou
E porque há sinfonia
Há também harmonia,
Há também melodia
E o dia e o ia e o A que criou


3. Baião De Dois (Manu Lafer)

Ô, minha santa
Leva a fumaça
Que levanta a caravana
Ô, meu benzinho
Serve o carinho
Que atravessa na garganta
Ô, meu apego
Vai como um ponto
Na distância que desponta

Ô, baião de dois
Ô, revelação

Lé com lé
Cré com cré

De mamando e caducando
De pegado a cafundó
Todo mundo vive só
(Todo mundo vive só)

Com que faca te feriste?
Com que amor te acostumaste?
De que impura fomitura
Tu provaste e aprovaste?
Com que vento interrompeste
Meu querer que provocaste?

Com que vinho te gabaste,
Com que fúria arrepiaste,
Na carreira dos destinos
Que certeira me rasgaste?
Com que espuma, com que bruma?
Com que feno, com que sono?
Com que filme, com que arte?

Ô, minha prenda
Leva a mentira
Põe e tira a minha venda
Ô, minha preta
Por sentimento
É que me finjo de poeta
Ô, menina
Em tua rima
É que eu me ensino da narina

Ô, baião de dois
Ô, rebentação

Lé com lé
Cré com cré

De mais zelo a desmazelo
Da mirada ao atropelo
Todo mundo vive só
(Todo mundo vive só)

Meu sorriso tu me deste
(Lume que tu me alegraste)
Que furtiva comitiva
Dispuseste, acompanhaste,
No alvoroço em que irrompeste
Qual caroço e tempestade?

Com que fel, qual azedume?
Que amargor, qual aziúme?
Na poeira dos destinos
Te abracei e me abraçaste
Com que espuma, com que bruma?
Com que feno, com que sono?
Com que filme, com que arte?


4. Qual Palavra? (Manu Lafer)

Participação: Cris Aflalo

Beijo do desejo
Vejo mesmo preso
Minha voz te libertar
Vou falar

Ouço o chão que voa
Para tua pessoa
Que eu não morra
Ao te encarar
Vou falar…

Todo mundo quer sem ter
Quer sentindo se perder
Da palavra
Qual palavra…
Quer dizer aquilo que
Nos trouxer meu coração de ti?


5. No Meio (Manu Lafer)

Ah, por que tudo é eterno?
Ermo do inverno é florir
Onde paramos e termos
Términos do prosseguir?

Ah, por você não passarmos
Das horas puras por vir
Outra do um, não para vermos
Vício dos ciclos surgir

Ah, eras tudo o que eu quero
Eros e amores em si
Onde um à outra nos demos?
Onde do meio é que eu vim?

Ah, para não continuarmos
Só começarmos a rir
Sílabas, beijos e jogos
Nossos desejos no sim

Ah, eu veria essa moça
Escassa, vir
Para que prostrada mostrasse e estrada
Aproximada do sem fim


6. A Gente Podia (Manu Lafer)

A gente podia…
Sei lá…
Se conhecer melhor
A gente podia…
Sei lá…
Dar uma volta, pegar um ar
Porque eu já tou
Confundindo as coisas
Porque eu já tou cheio
De segundas intenções
Tamos aí
Vamos curtir esse momento
Ver avião decolar (bis)

A gente podia…
Sei lá…
Tem fogo aí?
Que horas são?
A gente podia…
Sei lá…
A noite é uma criança
Você brilha mais do que o luar
Você gosta de praia?
Eu te levo ver o mar
Você gosta de festa?
Eu te levo para dançar
Não gosta de nada?
Eu te levo para o aeroporto
Ver avião decolar (bis)

Porque mesmo não tendo
Sido feitos um para o outro
(bis)

Homem e mulher
Sempre tem a ver
Sempre tem um momento
De carinho para se entender (bis)


7. No Fim Das Contas (Manu Lafer)

Eu queria comprar
Um presente bem caro
Para dar para você
Um anel de diamantes brilhantes
Para dar para você
Mas longe de você
Eu só consigo encontrar
Bijuteria barata
(E você vai pendurando sem graça)

Eu queria comprar
Uma roupa colorida
Para pôr em você
Um vestidinho bem curto e bem justo
Para pôr em você
Mas quando eu chego nas lojas
Eu gasto tudo nos tubos
E só te trago farrapo
(E você vai desfilando sem graça)

Quanto mais nos chegamos
Mais nos deixamos tímidos
É tanto tempo junto
E eu tenho medo de perder você
E o que é que eu posso dar
Para uma pessoa que diz
“Olha, como a Lua tá bonita”?
As nossas mãos nos tocando
(E nós de mãos abanando)

E no fim das contas (e no fim das contas)
E no fim das contas (e no fim das compras)
Eu quero me casar com você (bis)


8. Se Couber (Manu Lafer)

Mais do que a tua falta
Senti tua presença
Não exagero o que é te ver
Quando há amor

Então não há porquê
Mais do que amor eu sinto
Que com você existe
O sentimento de saber
Continuar
O que sou de você

Se eu por você insisto
Que eu em você consinto
Na liberdade de escolher
Nos dar amor
Se amor couber nos ter


9. Doze Fotogramas (Manu Lafer)

Participação: Danilo Caymmi

Primeiro eu te aperto
Bate a foto três por quatro
É perto como um quarto
No contato do cinema
Na briga da novela
Eu reviro a tua bolsa,
Passando-te o batom
Eu borro o álbum de retrato
Eu borro o álbum de retrato

Você parece louca
E eu não espalho só na boca
São três e te derramas
Foram doze fotogramas


10. Sabrina (Manu Lafer)

Participação: Danilo Caymmi

Sabrina, sabia, Sabrina?
Morena, menina,
Você recusou
O doce de coco batido
Que eu pus com biscoito,
E servi com bombom
Sabrina não quer canjibrina
Despreza o suspiro
Que leva o licor
Sabrina não bebe bebida,
Não come comida,
Começa, acabou

Sabrina não quer caloria,
Saliva escondida,
Borrando o batom
Sabrina, você que se pinte,
Você que se lixe,
Que aprenda o que é bom

Sabrina mulher de quinhentos talheres
Dos ossos e ofícios do amor
Sabrina sumida,
Sabrina sofrida,
Sabrina se acaba,
Você já é magra,
Me paga se diminuir
Minha mulher

Sabrina, sabia, Sabrina?
Morena, menina,
Você desdenhou
O caldo da profiterole,
E o meu rocambole
Já se mocozou

Sabrina jantou, se acabrunha,
Com fome de unha,
Seu prato dá dó!
Sabrina abusou da rotina,
Dieta de tina,
Legumes em pó

Sabrina já está definida,
Sarada e curtida,
Queimada de sol,
Sabrina só anda na linha,
Só quer coisa fina,
Que vá deitar só

Sabrina mulher de quinhentos talheres
Dos ossos e ofícios do amor
Sabrina sumida,
Sabrina sofrida,
Sabrina se acaba,
Você já é magra,
Me paga se diminuir
Minha mulher


11. Estrela Guia (Manu Lafer)

Eu mostrava e você já sabia
Eu brincando e você já sorria
Eu querendo, você “maravilha”
Eu deitava e a gente não dormia

Mas um dia eu me senti distante
E eu vi que o mundo mudaria
Que você também já era outra
E nem tudo teu me pertencia

Olhe, Estrela Guia,
Eu pensei que você fosse minha

Mas se um dia você me abandona
Eu não te esqueço nunca
Eu vou morrer na vida
(bis)


12. Cidade Inacabada (Manu Lafer)

Sofrer
É da tua envergadura
Loucura
É você quem me procura

Me deixa gostar de você
Me deixa atrever ter você
Apesar da miséria da
Inacabada cidade que não se fará
Minha diva há de vir dadivosa dançar
Minha musa, de mim amorosa,
Rapsódia, sem moda,
Alcançou teu cantar

Expulsei o teu desprezo à minha rosa
Te ver já não é suplício de amor
Aturei os teus costumes de teimosa
Te ver já me dá a força, que eu sei,
Você goza por crer
Que eu devoto em vão,
Um abraço na multidão
(Solidão se mistura)

Agrura,
És cativa e és clausura
Costura,
A razão que em mim te jura
Quando o piso encher
Quando o asfalto arder

Deixa ter tua promessa apaixonada
Sorri para me dar sentença de amor
Deixa ter o teu ciúme que te evoca
Te despe do som
Que à noite, na luz, se aloca
E desloca a visão
Sorve teu sal, salga-te a mão
Te amarra à minha ilusão

Destoa,
Carne à carne, morna e crua
Garoa,
Desmorona a criatura

Me deixa morar em você
Me deixa ver
A nação danação
Emoção sobrevoa a favela
É a rosa, é a rocha!
(É a rosa, é a rocha!)

Teu barranco é pro céu que te arrasta
Ao rasgar teu arranha-chão
Dá cidade, dá salvação


13. Gente Número 3 (Manu Lafer)

Participação: José Miguel Wisnik

Alvenaria do Rio Tietê
Faz Cingapura, CDHU
Beco e tijolo, que empurra e detém
Sem rua, sem teto, sem ter
Rogério, Barboza, João e José
Guilherme, Ricardo, Enrico e Lelê
Amor vale sangue, anima origami
Porque bumerangue ele é

Ponte Remédios, concreto pendor
Deu rebuliço, banzé, deu xabú
Pata e não crina do olhar mercador
Esmola no acelerador
Lucila, Fernanda, Claudinha, Erecê
Dadá, Luciana, Renata e Alê
Quem for de domingo, que vá de cavalo,
Quem for de menor, vá de a pé

Sigo essa linha pro risco correr
Luz da fundanga do Anhangabaú
Fio do pavio do refúgio do ser
O osso do povo é nascer
Nico, Tiago, Marcello e Inês
Erika, Lidia, Ulysses e Cris
Você que me ouça, você que se dane
A lua é que é de maré

Meia palavra, mau empreendedor
“Não” só afirma avestruz no tatu
Túnel, guindaste, sobrado e metrô,
São Paulo para vereador
Alice, Naiara, Ju, Clara e Bru
Pedrinho, Sophia, Mila e Moacyr
É tudo na vida saber encontrá-lo
Atalho, mistério de fé

Onde encontrar

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